quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Enquanto a cidade cochila


Depois de assistir ao Jornal Nacional com as principais notícias do dia, ele perdeu o sono, que o perseguia desde as 18h30. Normal. Quem nessa cidade maluca nunca teve vontade de cochilar na volta do trabalho para casa? As ruas movimentadas sempre tiveram algo de engraçado. Até para os motoristas mais bem humorados que tentam (ainda que em vão) encontrar razão para sorrir em meio ao rush diário.



Todos os dias eram sempre assim. O trânsito pesado, as pessoas apressadas, o furor típico das seis da tarde. Os ruídos de tudo marcavam o ritmo frenético. E era incrível que mesmo diante de tal cenário, aquele homem quisesse cochilar.



Agora não tinha mais vontade de dormir. Araci, a companheira de tanto tempo, ainda estava na cozinha lavando as louças do jantar de há pouco. Todos os dias ele pedia para que ela deixasse para arrumar no dia seguinte e vir sentar junto dele na sala. Todos os dias ela dava a mesma resposta de sempre: “Não suporto acordar e ver a pia suja de vasilhas”. E ele, mesmo sabendo que ouviria aquela resposta, insistia na pergunta. Era mesmo parte da rotina, como o sono de depois do trabalho.



Pensava que a vida era mesmo cheia de certas repetições. Será que as pessoas todas sentiam o isso? Será que todos se davam conta de sempre fazer as mesmas coisas nos mesmos horários? Lera, certa vez, que o inferno era a repetição. Imaginava o inferno assim: Um lugar imenso, cheio de repartições. Em cada uma delas, os pecadores tendo que expiar seus males, sofrendo os mesmos castigos, nos mesmos horários, pelas mesmas mãos...



A cena lembrava o inferno de Dante e deixava-o perturbado. Precisaria mesmo morrer para passar por aquilo? Não era a vida que levava tão cheio das mesmas coisas que o fazia padecer num inferno particular e intenso, a ponto de querer deixá-lo louco diante das mesmas cenas: as mesmas lamúrias da mulher, os mesmos blá-blá-blás do chefe no emprego, as mesmas contas, os mesmos trajetos, os mesmos programas no lazer. A mesma vida. A mesma...



Levantou e olhou-se no espelho. O rosto mudado. Mas ainda tinha o espírito jovem, embora a face se mostrasse ao contrário. Queria acreditar que ainda era o mesmo de antes. O mesmo dos tempos em que não havia saudade. Viver, então, seria isso? Andar sempre adiante, com a memória de outrora batendo na porta a cada novo segundo, como que o obrigando a relembrar o que acabou de se passar a minutos atrás, a horas atrás, a anos passados?



Estaria enlouquecendo, enquanto a cidade, embaixo dos doze andares daquele residencial, tentava cochilar? Lembrou-se de Guimarães Rosa. “Viver é negócio muito perigoso”. Chegou-se à janela e nem viu a mulher dizer que precisava do dinheiro para a feira do dia seguinte. Naquele momento, não ouvia mais nada.



Aos quarenta e sete anos de idade, parecia estar muito cansado de tanta repetição. Simplesmente, havia perdido as esperanças. Mas para que serve um homem que não espera por mais nada? Para dar milho a pássaros em praças públicas? Para olhar as crianças e tentar enxergar algo de bom nelas? E onde estão os pássaros? Por onde andam as crianças?



Olhou a noite cortada por faróis de automóveis velozes. Sentiu uma brisa fria bater-lhe na barba por fazer. Sorriu de alguma coisa que não fazia muito sentido e acabou fechando a janela para não perder as últimas emoções da novela das nove junto da mulher, que já se acomodara no sofá. Era mais o recomeço de uma cena que ele conhecia bem.