segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sobre o tempo (ou variações acerca dele)



I

O tempo passa! Lento ou apressado, mas passa. Passam as coisas boas da vida. Também passam as ruins. Passam as tempestades, passam as bonanças. Passam pesadelos, passam os medos. Tudo passa.
II

Na cama do hospital, um homem não quer sentir mais dor. Viveu muita coisa, criou família. Agora, está só. O enfermeiro moreno, de bigode e olhos castanhos, parece tanto com o J., seu filho mais velho que ainda não teve tempo de vir ao hospital. Por um momento, olhando a rua que dá acesso á casa de saúde, o velho homem parece ver um carro estacionando. De dentro dele, ele acha que vão saltar seus filhos e netos. Mas ninguém aparece por ali. De companhia naquele quarto grande, com as paredes pintadas de rosa, há mais três como ele. Velhos solitários esperando o tempo passar.

III

Mesmo quando estavam se amando, com toda a fúria que a paixão reserva aos corações adolescentes, ela pensava em outro. Anos mais tarde, quando o furor tinha diminuído um pouco, ela permaneceu pensando em outro. Quando nas horas do amor e de intimidade no colchão da cama estavam os dois, ela ainda pensava em outro. Os filhos vieram, os netos vieram, os cabelos embranqueceram, a morte chegou para o marido e ela continuava pensando em outro. Viveu todos os anos que lhe restaram, pensando em alguém que ela não conhecia, nunca tinha visto, mas que poderia ter aparecido, um dia, em sua vida.
IV

Ela era uma mulher. Nem jovem, nem velha, nem magra, nem gorda, nem feia e nem bonita. Apenas uma mulher. Tinha o humor variável: às vezes triste, às vezes alegre, às vezes ansiosa, às vezes calma demais. Além das oscilações hormonais, como lhe impunha a condição feminina, também sofria com as mudanças do tempo. Em dias de sol, tinha uma alegria contagiante e até perturbadora; em dias de chuva ou tempo nublado, ficava sem graça, como se algo lhe faltasse verdadeiramente. Gostava de fulano, mas um outro era quem lhe dava mais atenção. Não queria saber dele. Acontece que o tal fulano nunca a olhou. E ela ficou só, acreditando que poderia ter vivido de outra forma, pensando na vida que poderia ter sido e que não foi, como lera num verso de Manuel Bandeira.

V
Ficou ali, parado, enquanto queimava seu último cigarro da noite. Via as meninas passar, com outros caras, a caminho de uma boate ali perto. Via a noite ir embora, mas ele não sentia vontade de ir a lugar algum. Estava sentado num bar vazio, enquanto os garçons, embora calados, desejassem que ele fosse embora. Mas ele não queria ir para casa. Aquela noite não. Culpa de uma saudade danada de Carol, que se fora sem dizer a razão. No fundo, bem que ele sabia o motivo da separação. Custava-lhe assumir isso. Porém, isso era pura perda de tempo. Aliás, ficar sentindo a falta de alguém que sequer se lembrava dele, era também uma bobagem. Melhor pedir outro chope, antes que a noite perdesse também o seu sentido.

Janelas Abertas


Olhava o mundo de dentro de casa. Era uma maneira muito particular de enxergá-lo.Quase não saía. Não gostava de se mostrar, pavor de alteridade. Voltada para si, a moça Manu se escondia do que via, e conversava com tantas vozes de seu pensamento desordenado, atrás da cortina daquela casa simples, na rua do Meio. No seu mundo, ninguém nunca a encontrou. No seu mundo, só as vozes havia. E Manu acreditava que estava bem acompanhada.



Manu era assim. Meio tímida. Falava quase muito pouco, mas pensava muito. Mantinha constante diálogo com o turbilhão de pensamentos que nela fazia morada. Muitas vozes. Uma multidão sem tamanho na sua pequena cabeça dava conta de todos os sons do mundo. Manu pensava pra si, em si e consigo. O mundo era o fascínio de enxergar a janela aberta. Via-o de dentro pra fora, com suas vozes mais íntimas discursando sobre tudo. Ali, onde ninguém pudesse encontrá-la, atrás da cortina da casa na rua do Meio. Um dia, a janela não abriu. Não havia ninguém em casa, ninguém passou na rua. Só havia as vozes.Então o mundo de Manu se transformou numa obscura sensação de liberdade. E ela sorriu.

O homem que queria dirigir Marília Pêra


Era assim sempre: acordava, tomava café com pão, manteiga. Às vezes, comia também uma fruta. Bananas. Adorava-as. “Banana é bom para o sangue”, sempre ouviu alguém falar. E ele acreditava que isso fosse bom. Mal é que não faria. Depois lia o jornal. Abria o caderno de cultura, já que tinha um sonho na vida, o de ser diretor teatral. Amava a idéia de que, um dia, pudesse dirigir a Marília Pêra num monólogo...um intenso e bonito monólogo. Escrito por quem? Ora. Isso não importava. Era como as bananas do desjejum matinal: com Marília Pêra no papel principal, não haveria de ter texto ruim.


Depois ia ao quintal arrancar as folhas mortas dos pés de planta, as partes indesejadas. Era engraçado. Até nos vegetais parecia haver a poesia da nossa pobre existência. Quem deve arrancar mesmo as nossas folhas mortas? Quem deve apurar as ferramentas para nos livrar dos talos indesejados que nos impedem o crescimento? “Kkkkkkkkkkk”, foi a gargalhada que ele deu, enquanto pensava nessas tolices. Afinal, ninguém merece filosofia tão barata, assim, de graça e tão cedo.


Era assim que ele passava a maioria das manhãs. Depois, uma volta na praça, onde via outros pobres diabos como ele. “Homens de memória é o que nós somos”. Tinha lido aquilo em algum lugar. Não recordava onde. E isso não importava. Mas via algum sentido naquelas palavras. Em certa idade na vida, o que importa são nossas memórias. E só elas sobrevivem aos passos do tempo.


Esse homem também tinha segredos. Sim. Era um homem de coisas nunca reveladas. Está certo de que pessoa alguma precisava saber que ele, aquele velhinho de aparência típica dos avozinhos simpáticos, fora um grande fofoqueiro quando jovem. Não fofoqueiro à toa, não. Mas um legítimo desejador da tristeza alheia. Foram suas palavras que encerraram tantos casamentos. Foi por meio de sua boca, que tanta gente encontrou a desilusão e viu a tristeza chegar em casa.
Agora, era predestinado ao isolamento, ao silêncio, à desilusão. Não tinha mais contra quem destilar o seu veneno. Não tinha nem mais o que falar. Foi ficando triste como quem perdeu o assunto. Ficou casmurro. Não tão parecido quanto o outro, o da Capitu. Mas mantinha o mesmo isolamento de mundo, a mesma cabeça pesada de histórias vividas, a mesma saliva amarga na língua. Isso não o perturbava. Preferia imaginar o dia em que dirigisse a Marília Pêra.


Aliás, esse era mesmo o seu único desejo ainda. O único que não sucumbira com o passar dos anos. O único que alimentava a ele e que ele alimentava também. Estava velho, é verdade. Mas tinha um sonho. E quem tem um sonho não dança, conforme uma canção tocada no rádio do vizinho adolescente.


Esse homem tinha essa história estranha. Esse era o resumo de todos os seus dias. Como é difícil ficar velho e não ter ninguém para conversar. Se não achasse um dramaturgo à altura, por que ele não poderia aventurar-se pelos caminhos da escrita? Na certa, o espetáculo estaria perfeito. Marília Pêra iria encenar o monólogo chamado “O livro dos nossos dias”. Meio burguês demais, é verdade. Mas quem se importa mesmo com aquilo que está no palco? O fundamental era entreter. E, quem sabe, conseguir dar um pouco de circo, a quem tinha pouco (ou quase nenhum) pão. Marília Pêra que o aguardasse.
Foto: oglobo.com