quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Memórias XVII - Livro de receitas

Em toda família há um livro de receitas antigo. O precioso compilado de “modos de fazer” guloseimas, herdado da avó pela mãe e que deverá será herdado pela filha, é o registro gastronômico de várias gerações. Esse livro tem informações que ultrapassam a fronteira dos anos. E é mágico. Assim, um dia, cinquenta anos depois, a bisneta aprende a fazer os pasteizinhos de queijo que eram a especialidade da sua bisavó. E talvez, ela os torne ainda mais saborosos.
A partir desse exemplo primário, percebe-se a dimensão que os registros históricos têm em nossa vida. É preciso respeitar essas questões, pois elas contribuem para a composição de toda uma memória e também de uma história. Ressalta-se a importância da preservação dos documentos (no caso, o livro de receitas). Mas também, é preciso revisá-los, mergulhar a fundo nos saberes ali descritos, tentando compreender o que de fato eles representam. O pensador francês, * Michel Foucault afirmou certa vez, que a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo (...).
Resumindo, a grosso modo, o que disse o filósofo, o documento (o livro de receitas) não pode ser imaculado, algo intocável. Pelo contrário, deve ser, inclusive, questionado, incrementado, mexido e testado. Assim, nossa memória precisa ser reorganizada de forma crítica. Não se pode enaltecer tudo o que foi registrado, sem estabelecer m ponto de vista crítico.
Em vez de bater palmas para o que ficou do passado (e só porque ficou) é mais interessante, entender os rastros e as marcas deixadas por esse objeto ao longo dos anos. A sua constituição, a sua importância e as razões que o tornaram tão célebres. Vejamos. Depois de admirar o livro de receitas da avó, é preciso ver se os ensinamentos levam, realmente, a pratos saborosos.
Há muitos documentos intocáveis e que são elevados à categoria de obras (ou feitos) fundamentais. Mas, talvez, ninguém “ousou” saber qual de fato é a sua razão de ser. Nesse sentido, a revisão de nossa memória deve ser feita constantemente. Elogiar e reconhecer a importância dos documentos é fundamental para nossa condição de memorialistas. No entanto, é necessário rever essas fontes, desconfiando das coisas antigas e não apenas aplaudindo, sem interpretar e sem dar ouvidos ao contraditório.
* FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.