terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ao som de Blackbird


Esta crônica é dedicada a Frederico Miranda,monlevadense que vive em Belo Horizonte


Quando o jovem que tocava piano sentou-se na cadeira do avião que o levaria para Paris, ele fechou os olhos e ligou o MP3 player para ouvir Beatles. Ele sabia que tinha muito que pensar antes de desembarcar na capital francesa. O jovem iria estudar música em um conservatório da cidade luz e sentia, no peito, uma ponta de angústia abalar-lhe o coração.
Mas o que mais o perturbava, não era o que teria pela frente, nem os eventuais problemas com o idioma, com o novo lar ou com a falta de trabalho em um país estrangeiro. Nada disso o incomodava. O que mais o deixava triste e o fazia abandonar o Brasil por uns tempos, era tentar escapar de si, mais precisamente, do desejo de ter conhecido um tio, morto precocemente, antes de ele ter nascido.
Desde criança, sempre ouvira a mãe contar-lhe, com um fio de lágrima no canto do olho a triste história do irmão. O tio, que, aos 19 anos, viajou com os amigos e a família para a praia, a fim de comemorar o novo emprego. Ele iria para a Itália, trabalhar na sede da Fiat. Tudo estava perfeito, mas aconteceu o pior. Ao ver uma menina se afogando, ele não pensou duas vezes em salvá-la. Por ser um bom nadador, conseguiu tirá-la do fundo das águas, mas, já por estar exausto, não resistiu à correnteza e sumiu no mar. O corpo foi achado dois dias depois. Pelo pai, que não descansou até encontrá-lo.
O jovem pianista não sabia o motivo da fascinação pela história do irmão da mãe, que era, sem dúvida, seu herói familiar. No avião, que já taxiava na pista, ele ouvia os quatro de Liverpool entoarem clássicos. A mente ia longe e esbarrava na lembrança do tio. Imaginava-o salvando a menina e não tendo forças para voltar à superfície. O que será que passou na cabeça dele naquele instante, em que era sugado para o mar adentro? Será que ele pensou em algum amor que ficava para trás? Será que ficou com medo, enquanto lutava em vão contra as ondas fortes? Será que chorou em meio do azul e do sal?
Tudo isso girava na cabeça do jovem pianista, que agora ouvia Blackbird. Ele sabia que o tio também gostava desta música. A avó falara, em certo dia de almoço, ao ouvir o neto tocar a canção no piano, que com o primeiro salário, o tio comprara um disco de capa branca e não parava de ouvir aquela melodia lenta e triste. O jovem pianista sentia uma angústia profunda quando a ouvia. Lembrava-se daquele e sentia o desejo de tê-lo conhecido consumir-lhe o coração.
Ele agora viaja para outro país e tem, no peito, a mesma dor de vida que atingia o tio anos atrás. O pianista não sabe, mas o herói-familiar amava cantar, ainda que com um inglês incorreto, a melodia beatle que ouvia ele, agora, dentro do avião. A aeronave começou a ganhar os ares e para trás, Belo Horizonte ia ficando, menos aquela lembrança...
O jovem recorda a avó contando que, após a morte do filho, os discos dele ficaram guardados em uma caixa, no sótão da antiga casa. Ele nunca tivera coragem de ir lá. Sabia que poderia encontrar raridades, mas preferia não tocar nos vinis organizados por ele. Na verdade, agora que voava para longe, ele se questionava o porquê de não ter violado a caixa. Por que não ter escutado os discos?
O pianista nem desconfiava que tinha a mesma vontade de viver intensamente, sem ligar para amarras, como o tio tivera um dia. A vontade de não ter destino certo. Ambos pensavam que a vida é, de fato curta, para ser pequena e que precisa ser aproveitada antes do tempo final, ser ouvida antes do último acorde do baile.
Agora, entre as nuvens, Blackbird já tinha acabado, mas ele resolve repeti-la. Gosta da entonação da voz, gosta do violão inicial e sente-se em apuros com o refrão forte. Mas, ainda assim, para ele, a canção é uma forma de aconchego. Ele olha para as nuvens abaixo do avião e sonha de olhos abertos com os gestos do tio. Imagina que os dois estão em um piano bar, falando da vida que gostariam de ter vivido e das diferenças do tempo de cada um. Ao som de Blackbird, ele vê o céu de dentro e acha que, assim, está mais perto dos olhos e do coração daquele que não mais está aqui.