quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A tara do poeta


Outro dia li um resumo de uma dissertação de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade, a respeito de o Amor Natural, obra póstuma do poeta itabirano e que traz poemas eróticamente explícitos. Lembrei-me que li essa obra em meados de 2000 e me impressionou muitíssimo o fato de Drummond, aquele velhinho de óculos com cara de avô, ter escrito algo tão violentamente poético, como a descrição do sexo oral. Esse é um dos poemas que mai gosto, pelas aliterações e pelo ritmo.

A língua lambe

A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão,
e vai tecendolépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos
e rugidosde leões na floresta, enfurecidos.


Drummond é demais.... Além de revolucionar a poesia do modernismo com seu caráter existencialista, além de escrever versos sobre a humanidade, sua dor, sua vida de cão no mundo, além de reproduzir a paixão por palavras, por mostrar a beleza do óbvio, além de ser o poeta maior, ele era amante, revelando-se um elegantíssimo tarado.

Trecho de um conto que estou escrevendo...

Resto de mim
A mulher que está diante do tanque lavando roupas, é Joana. Ela não tem sobrenome apesar de ser casada e mãe. É apenas Joana, tão somente. Ela tem trinta e poucos anos e é de uma beleza quase rude. Tem cabelos louros, nem curtos, nem longos, mal tratados pela árdua tarefa diária de cuidar do lar; os lábios delicados de mulher rasgam sua face, tem o ventre cansado de cinco filhos. Não sei se o encanto de Joana parte de seus olhos cor de ardósia, ou se da provocante feminilidade que dela exalava, mesmo sob as roupas rotas de tecido ordinário e de seu perfume de alho e sabão.
É quase comovente observar Joana trabalhando. Suas mãos tratam bem as peças de roupa, cuidando delas com o primor de noiva ao seu vestido. Esfrega as camisas do marido, retirando as impurezas com o opaco sabão de barra, grosso, sem espuma ou cheiro e da frieza dura da água armazenada na tina de madeira.
E Joana canta. Canta um samba do tempo em que não tinha pecado. Sim, Joana um pecado. Um pecado que entediava sua vida, que a tornava diferente das mulheres que o marido arranjava na rua. Um pecado que pesava a solidão de todas as suas noites: Joana amava mais os outros do que amava a si mesma. Daí a falta de cor em sua vida. Daí o sofrimento particular e sem medida. Daí, a sua vontade de não ser Joana e ser a moça loura do cinema que ela viu uma vez, que dançava sensual para o homem que queria conquistar. Mas Joana não tinha coragem. E por isso se entregava ao cuidado da casa, com a mesma paixão dos que se entregam ao corpo alheio, em lençóis de amor em noites frias.
E Joana costurava as calças dos filhos, cozinhava os pratos que os três devoravam sem sabor e apagava as marcas carmins de batom que encontrava nos colarinhos do marido. Quanto mais exercia sua função de simplesmente ser dona, quanto mais era mãe, quanto mais não cuidava de si e ia cansando sua beleza loura, mais desejava ser a moça do cinema. A moça que levantava a saia enquanto dançava e mostrava as pernas na fenda de sensualidade do seu vestido vermelho. E por isso, como que para se punir do que sentia, mais trabalhava e se esquecia de que também era mulher.