terça-feira, 30 de junho de 2009

Cenas Matinais

I
A senhora acordou naquela manhã com uma sede danada de ver todas as belezas desse mundo. Abriu a janela e descobriu um céu azul, com um sol morno e ouviu, ao longe, o latido dos cães do vizinho. Sentiu na boca um gosto de renovação de tudo e respirou o ar fresco de abril. As flores do parapeito da janela lançavam ao ar cores ornamentais, como se tivessem desabrochado para saldar aquela manhã sem nenhum espanto.
A senhora deixou o quarto e, a caminho da cozinha, pensou que o mundo tem um sabor especial quando se quer senti-lo. Pensou que, naquela manhã, nada mais havia de importante do que aquilo que a vida lhe pintava.
Tomou o café preto e forte com pão e manteiga como se fosse uma refeição especial. A mais especial de todas. Estava feliz, como se nada mais lhe bastasse naquele momento. Por isso, celebrou aquela descoberta: de que para tudo ser especial, nada é mais necessário do que mudar a forma de ser e de agir, além de enxergar as coisas com os olhos do coração.

II
Enquanto esperava o ônibus chegar, às 8h15 de sábado, ele acendeu um cigarro para matar o tempo e pensou naquela que iria encontrar, um pouco mais tarde, assim que vencesse a barreira dos 110km que os separava. Iria para Belo Horizonte passar o fim de semana com a noiva. Antes de atravessar o gradil e de ir em direção ao ponto de embarque, lembrou dela, com o vestido alaranjado que tanto o agradava e sorriu. Aquela lembrança o deixou mais feliz ainda. Então, teve a certeza de que tudo o que mais queria na vida, era desfrutar manhãs como aquela e viver para amar aquela que escolhera para sempre ser sua namorada.

III
Não queria acordar quando o despertador tocou e a tirou de um sono de dez horas seguidas. Na verdade, até despertou de leve, mas recusou-se a levantar-se, tentando não perder o fio da meada do sonho que estava tendo. Espreguiçou-se, enquanto o alarme, insistentemente, não parava de tocar.
O remédio era mesmo levantar e tomar conta da vida. Apesar de não ter de trabalhar tão cedo, esqueceu-se de desligar o aparelho. Então, como já tinha levantado mesmo, pensou que seria bom fazer uma caminhada com a cadela Bethânia. Calçou os tênis, prendeu o animal na guia e saiu para a praça principal do bairro, sentindo no rosto o vento meio frio das 6h30. Sentiu também que o dia todo seria diferente. E iria pagar para ver.

IV
Foi numa manhã de abril como a de hoje, que ela o viu partir sem dizer-lhe adeus. Estava em casa, lavando umas vasilhas para a mãe. Faltava uma semana para o casamento e ela o viu passar na rua, devagar. Ele parou o carro porque sabia que ela viria. Dito e feito. Ela surgiu radiante, querendo um abraço apertado e um beijo.

Mas ele não desceu do carro. Ficou ali, com um olhar distante, como quem quer dizer algo e não diz. Ela perguntou o que havia e ele olhou para baixo e disse que estava indo para BH comprar umas coisas para casa. Ela quis ir junto, mas ele não deixou. Disse ser desnecessário. Então, beijou as mãos dela e disse que ela iria gostar da surpresa. Arrancou o carro e nunca mais voltou.
Anos mais tarde, ela descobriu que ele partira para se casar com outra mulher no Rio de Janeiro. Hoje, aquele homem que a abandonara, vive do comércio e tem uma loja em uma shopping na cidade maravilhosa. E ela, não se casaria mais e, pelo resto da vida, iria se lembrar daquele dia em que alguém lhe disse adeus sem sequer olhar nos seus olhos.

Você já olhou para o céu hoje?

O mundo gira rapidamente, assim como as águas do rio correm para abraçar o mar. E eu pergunto: você já olhou para o céu hoje? A maioria das pessoas, cada vez mais introspectivas, remoendo cada qual o seu pequeno e particular problema não olham nos olhos e nem se preocupam com as coisas que estão ao redor. Parece que deu a louca e ninguém mais percebe as coisas fundamentais para um cotidiano feliz.

Sim, o cotidiano pode ser feliz. Tolo é quem se queixa da rotina. Afinal, não há nada no mundo que funcione sem organização, sem processos metodológicos. E é isso que constitui a rotina. Tudo bem. Concordo que fazer as mesmas coisas diariamente enche a paciência de todo mundo. Mas, por que não tentar fazer as mesmas coisas, de outra forma, buscando um novo olhar sobre elas?
Há quanto tempo você não olha o céu? Não olha as nuvens de dezembro e o azul das manhãs que antecedem o Natal? Você percebe, no ar, um cheiro de esperanças a serem renovadas com o nascer de um novo ano? Não? Então é preciso rever alguns conceitos. É necessário inventar de novo o amor, conforme cantou Vinícius.

Vivemos a era do imediatismo. Tudo é para ontem, mas a durabilidade é pouca. Isso é, as coisas de tão intensas, acabam passando muito rápido e escorrem entre os dedos feito finos grãos de areia ao menor soprar de vento. Tudo se vai, às vezes, sem nem dar tempo para as saudades. Assim, preocupada com a manutenção do efêmero, muita gente se esquece de coisas menores, mas nem por isso menos importantes.

Não seria a hora de tentar fazer os mitos? Numa tarde de 1966, nas areias quentes da praia de Venice Beach, Califórnia, dois jovens estudantes de cinema se reúnem e decidem montar uma banda de rock. Trata-se do tecladista Ray Manzareck e do poeta Jim Morrison. O primeiro, afoito com a fama, manifesta o desejo de ficar e rico, além de ter mulheres e mimos luxuosos. O outro, mais preocupado com a repercussão do trabalho, diz que quer mais. Ele quer fazer os mitos. Quer entrar para a história e que todo o resto seria conseqüência dessa obra grandiosa. Manzareck concordou. Assim nasceu o The Doors, grupo de rock que mudou o jeito de se fazer música ao mesclar poesia, jazz, blues e rock, com performances teatrais e ousadas. Entraram para a história e se tornaram referência para tantos outros grupos.

Nos dias de hoje, alguém se preocupa em fazer os mitos? Alguém quer ser lembrado na posteridade? E você, o que faz para preservar sua pequena história? O mundo é cheio de grandes momentos. Mas a pressa do trabalho, na busca desenfreada pelo dinheiro, faz com que as pessoas deixem de perceber certos acontecimentos. Uma rosa que nasceu no jardim de casa, um beija-flor que aparece na janela do apartamento durante o café da manhã, o sorriso de uma criança no colo da mãe no ponto de ônibus...

O sistema em que estamos inseridos engole e mecaniza a todos. Os “bom dia” dados entre dentes, a falta de um abraço fraterno nos conhecidos de infância, por receio, pudor ou sei lá o quê, torna as pessoas mais frias e distantes, longe de sinceros cumprimentos e de palavras amigas. A pressa no trânsito que aflige ainda mais ao som de frenéticas buzinas, ajuda a criar o caos da contemporaneidade. Soma-se a tudo isso, a velha argumentação da falta de tempo e das desculpas esfarrapadas, sem contexto algum.

É bom que se veja o mundo, que se olhe as coisas ao redor e que se tenha um olhar de turista para as coisas mais simples. Assim, fica menos árduo enfrentar os desafios que não são poucos. Fica mais fácil caminhar descalço sobre o quente asfalto nosso de cada dia. Então, que tal olhar para o céu agora?