Era assim sempre: acordava, tomava café com pão, manteiga. Às vezes, comia também uma fruta. Bananas. Adorava-as. “Banana é bom para o sangue”, sempre ouviu alguém falar. E ele acreditava que isso fosse bom. Mal é que não faria. Depois lia o jornal. Abria o caderno de cultura, já que tinha um sonho na vida, o de ser diretor teatral. Amava a idéia de que, um dia, pudesse dirigir a Marília Pêra num monólogo...um intenso e bonito monólogo. Escrito por quem? Ora. Isso não importava. Era como as bananas do desjejum matinal: com Marília Pêra no papel principal, não haveria de ter texto ruim.
Depois ia ao quintal arrancar as folhas mortas dos pés de planta, as partes indesejadas. Era engraçado. Até nos vegetais parecia haver a poesia da nossa pobre existência. Quem deve arrancar mesmo as nossas folhas mortas? Quem deve apurar as ferramentas para nos livrar dos talos indesejados que nos impedem o crescimento? “Kkkkkkkkkkk”, foi a gargalhada que ele deu, enquanto pensava nessas tolices. Afinal, ninguém merece filosofia tão barata, assim, de graça e tão cedo.
Era assim que ele passava a maioria das manhãs. Depois, uma volta na praça, onde via outros pobres diabos como ele. “Homens de memória é o que nós somos”. Tinha lido aquilo em algum lugar. Não recordava onde. E isso não importava. Mas via algum sentido naquelas palavras. Em certa idade na vida, o que importa são nossas memórias. E só elas sobrevivem aos passos do tempo.
Esse homem também tinha segredos. Sim. Era um homem de coisas nunca reveladas. Está certo de que pessoa alguma precisava saber que ele, aquele velhinho de aparência típica dos avozinhos simpáticos, fora um grande fofoqueiro quando jovem. Não fofoqueiro à toa, não. Mas um legítimo desejador da tristeza alheia. Foram suas palavras que encerraram tantos casamentos. Foi por meio de sua boca, que tanta gente encontrou a desilusão e viu a tristeza chegar em casa.
Agora, era predestinado ao isolamento, ao silêncio, à desilusão. Não tinha mais contra quem destilar o seu veneno. Não tinha nem mais o que falar. Foi ficando triste como quem perdeu o assunto. Ficou casmurro. Não tão parecido quanto o outro, o da Capitu. Mas mantinha o mesmo isolamento de mundo, a mesma cabeça pesada de histórias vividas, a mesma saliva amarga na língua. Isso não o perturbava. Preferia imaginar o dia em que dirigisse a Marília Pêra.
Aliás, esse era mesmo o seu único desejo ainda. O único que não sucumbira com o passar dos anos. O único que alimentava a ele e que ele alimentava também. Estava velho, é verdade. Mas tinha um sonho. E quem tem um sonho não dança, conforme uma canção tocada no rádio do vizinho adolescente.
Esse homem tinha essa história estranha. Esse era o resumo de todos os seus dias. Como é difícil ficar velho e não ter ninguém para conversar. Se não achasse um dramaturgo à altura, por que ele não poderia aventurar-se pelos caminhos da escrita? Na certa, o espetáculo estaria perfeito. Marília Pêra iria encenar o monólogo chamado “O livro dos nossos dias”. Meio burguês demais, é verdade. Mas quem se importa mesmo com aquilo que está no palco? O fundamental era entreter. E, quem sabe, conseguir dar um pouco de circo, a quem tinha pouco (ou quase nenhum) pão. Marília Pêra que o aguardasse.
Foto: oglobo.com
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