O escritor argentino Jorge Luís Borges tem um conto interessantíssimo sobre a memória. “Funes, o Memorioso” narra a história de um homem que, após sofrer uma queda, parou de esquecer. Depois do acidente, ele se lembrava de tudo o que tinha visto, ouvido e vivido, sem deixar escapar um detalhe sequer. No entanto, a “doença” da memória o deixou com a incapacidade de pensar. “Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar.Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair’, afirma o narrador.
Imerso nesta constante memorização, Funes não refletia, não selecionava as informações para que pudesse lembrar depois. O excesso de memória mata a reflexão. Não adianta iniciarmos uma longa e interminável rememoração de tudo o que se passou, sem algum critério mínimo de organização.
Não adianta, como a personagem do conto, nos transformarmos em um banco de informações e dados preciosos a respeito de nosso passado, sem no entanto, lançar sequer um olhar de crítica para ele. Hoje, vivemos num mundo tomado de informações: jornais, revistas, sites, blogs, redes sociais, entre outros elementos nos bombardeiam, a toda hora, com tantos dados.
No entanto, é preciso filtrar, reciclar, organizar e criticar para que a memória seja, então, valorizada de fato. Não adianta nos tornarmos enciclopédias repletas de saudosismo e nada mais. Até porque, o memorialismo não é feito somente de coisas aprazíveis. A memória, além da doce rememoração, pode também trazer o cheiro pobre do passado. Mas insistimos em esquecer desses percalços. Como ferramenta de felicidade, alimentamos uma falta daquilo que julgamos ter amado um dia.
Esquecimento e lembrança complementam-se. Precisam um do outro. Estão unidos numa interdependência fora do comum, pois um não vive sem o outro. Neste sentido, apesar do ridículo obvio, é preciso esquecer para lembrar. E se não nos esquecermos, como podemos fazer uma seleção daquilo que, de fato, merece figurar nas listas de reminiscências? Como valorizar os detalhes importantes de nossa história, se insitimos em lembrar sempre das mesmas coisas? Sim. A memória daquilo que está sempre sendo lembrado, torna-se banalizada. Esqueçamos. Para então lembramos depois.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Memórias XVII - Livro de receitas
Em toda família há um livro de receitas antigo. O precioso compilado de “modos de fazer” guloseimas, herdado da avó pela mãe e que deverá será herdado pela filha, é o registro gastronômico de várias gerações. Esse livro tem informações que ultrapassam a fronteira dos anos. E é mágico. Assim, um dia, cinquenta anos depois, a bisneta aprende a fazer os pasteizinhos de queijo que eram a especialidade da sua bisavó. E talvez, ela os torne ainda mais saborosos.
A partir desse exemplo primário, percebe-se a dimensão que os registros históricos têm em nossa vida. É preciso respeitar essas questões, pois elas contribuem para a composição de toda uma memória e também de uma história. Ressalta-se a importância da preservação dos documentos (no caso, o livro de receitas). Mas também, é preciso revisá-los, mergulhar a fundo nos saberes ali descritos, tentando compreender o que de fato eles representam. O pensador francês, * Michel Foucault afirmou certa vez, que a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo (...).
Resumindo, a grosso modo, o que disse o filósofo, o documento (o livro de receitas) não pode ser imaculado, algo intocável. Pelo contrário, deve ser, inclusive, questionado, incrementado, mexido e testado. Assim, nossa memória precisa ser reorganizada de forma crítica. Não se pode enaltecer tudo o que foi registrado, sem estabelecer m ponto de vista crítico.
Em vez de bater palmas para o que ficou do passado (e só porque ficou) é mais interessante, entender os rastros e as marcas deixadas por esse objeto ao longo dos anos. A sua constituição, a sua importância e as razões que o tornaram tão célebres. Vejamos. Depois de admirar o livro de receitas da avó, é preciso ver se os ensinamentos levam, realmente, a pratos saborosos.
Há muitos documentos intocáveis e que são elevados à categoria de obras (ou feitos) fundamentais. Mas, talvez, ninguém “ousou” saber qual de fato é a sua razão de ser. Nesse sentido, a revisão de nossa memória deve ser feita constantemente. Elogiar e reconhecer a importância dos documentos é fundamental para nossa condição de memorialistas. No entanto, é necessário rever essas fontes, desconfiando das coisas antigas e não apenas aplaudindo, sem interpretar e sem dar ouvidos ao contraditório.
* FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.
A partir desse exemplo primário, percebe-se a dimensão que os registros históricos têm em nossa vida. É preciso respeitar essas questões, pois elas contribuem para a composição de toda uma memória e também de uma história. Ressalta-se a importância da preservação dos documentos (no caso, o livro de receitas). Mas também, é preciso revisá-los, mergulhar a fundo nos saberes ali descritos, tentando compreender o que de fato eles representam. O pensador francês, * Michel Foucault afirmou certa vez, que a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo (...).
Resumindo, a grosso modo, o que disse o filósofo, o documento (o livro de receitas) não pode ser imaculado, algo intocável. Pelo contrário, deve ser, inclusive, questionado, incrementado, mexido e testado. Assim, nossa memória precisa ser reorganizada de forma crítica. Não se pode enaltecer tudo o que foi registrado, sem estabelecer m ponto de vista crítico.
Em vez de bater palmas para o que ficou do passado (e só porque ficou) é mais interessante, entender os rastros e as marcas deixadas por esse objeto ao longo dos anos. A sua constituição, a sua importância e as razões que o tornaram tão célebres. Vejamos. Depois de admirar o livro de receitas da avó, é preciso ver se os ensinamentos levam, realmente, a pratos saborosos.
Há muitos documentos intocáveis e que são elevados à categoria de obras (ou feitos) fundamentais. Mas, talvez, ninguém “ousou” saber qual de fato é a sua razão de ser. Nesse sentido, a revisão de nossa memória deve ser feita constantemente. Elogiar e reconhecer a importância dos documentos é fundamental para nossa condição de memorialistas. No entanto, é necessário rever essas fontes, desconfiando das coisas antigas e não apenas aplaudindo, sem interpretar e sem dar ouvidos ao contraditório.
* FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Memória XVI Flashes
A memória não é voluntária. Precisa de um “start” para ser ativada, precisa de um motivo para vir à tona e tocar a superfície das águas profundas, nas quais está mergulhada. Assim, ela não tem vontade própria, não surge em nossos pensamentos do nada, de repetente, não mais que de repente. Sempre há necessidade de um gatilho, de um flash inesperado e que desperte essas recordações.
Assim, caminhando pela avenida no fim de tarde, sentindo calor por causa da falta de chuva nesta época do ano, ele pensa nas contas a pagar. Pensa na fatura do cartão de crédito e fala de si para si: “Preciso diminuir esses gastos”. Está concentrando, os passos seguem rápido porque já são dez para as seis e é preciso chegar à lotérica antes que ela feche.
Mas aí, eis que de repente, uma brisa desatenta o pega de surpresa, com um perfume que ele não sentia há tempos. Em frações de segundos ele vasculha os arquivos cerebrais e descobre numa prateleira empoeirada, a lembrança de Maria, a primeira namoradinha.
Eram jovens demais. Ele tinha 14, talvez 15 anos. Ela não muito mais que isso. Mas o perfume que ela usava era aquele, como era mesmo o nome? Nesse instante veloz, nesse assalto repentino de memória, ele diminui o ritmo dos passos e se esquece da conta a pagar. Em seus olhos está Maria, seus cabelos pretos, compridos e molhados, penteados com as pontas dos dedos... Por onde anda hoje? Terá casado? Terá morrido? Faz anos... Mas o perfume, inconfundível, era o mesmo. Esse perfume que ele tanto adorava e que estava adormecido em algum lugar ermo da lembrança voltou a
E a saudade doeu, mas trouxe uma pontinha de prazer nessa recordação: ele e Maria, há tanto tempo, brincando de se amar: e era por toda a vida! Tudo era intenso, a vida era bebida depressa e com a sede dos que amam tão jovens... Maria se foi e ele também nem se lembrava de que fora um rapaz apaixonado um dia.
Bastou o perfume para lembrar. Aquele cheiro adocicado que inundou sua vida, naquele fim de tarde em que a chuva insistia em não chegar e o calor e o tempo seco deixavam tudo mais difícil. O perfume que veio com a brisa, inundou sua alma de memória. E ele agora estava inebriado de nostalgia, do tempo bom em que era rapaz e não tinha com o que se preocupar, a não ser, amar Maria e seus cabelos molhados. Ele riu ao deliciar-se de novo com o amor antigo, o amor infante e seguiu até a lotérica, mas agora, a passos mais lentos.
Assim, caminhando pela avenida no fim de tarde, sentindo calor por causa da falta de chuva nesta época do ano, ele pensa nas contas a pagar. Pensa na fatura do cartão de crédito e fala de si para si: “Preciso diminuir esses gastos”. Está concentrando, os passos seguem rápido porque já são dez para as seis e é preciso chegar à lotérica antes que ela feche.
Mas aí, eis que de repente, uma brisa desatenta o pega de surpresa, com um perfume que ele não sentia há tempos. Em frações de segundos ele vasculha os arquivos cerebrais e descobre numa prateleira empoeirada, a lembrança de Maria, a primeira namoradinha.
Eram jovens demais. Ele tinha 14, talvez 15 anos. Ela não muito mais que isso. Mas o perfume que ela usava era aquele, como era mesmo o nome? Nesse instante veloz, nesse assalto repentino de memória, ele diminui o ritmo dos passos e se esquece da conta a pagar. Em seus olhos está Maria, seus cabelos pretos, compridos e molhados, penteados com as pontas dos dedos... Por onde anda hoje? Terá casado? Terá morrido? Faz anos... Mas o perfume, inconfundível, era o mesmo. Esse perfume que ele tanto adorava e que estava adormecido em algum lugar ermo da lembrança voltou a
E a saudade doeu, mas trouxe uma pontinha de prazer nessa recordação: ele e Maria, há tanto tempo, brincando de se amar: e era por toda a vida! Tudo era intenso, a vida era bebida depressa e com a sede dos que amam tão jovens... Maria se foi e ele também nem se lembrava de que fora um rapaz apaixonado um dia.
Bastou o perfume para lembrar. Aquele cheiro adocicado que inundou sua vida, naquele fim de tarde em que a chuva insistia em não chegar e o calor e o tempo seco deixavam tudo mais difícil. O perfume que veio com a brisa, inundou sua alma de memória. E ele agora estava inebriado de nostalgia, do tempo bom em que era rapaz e não tinha com o que se preocupar, a não ser, amar Maria e seus cabelos molhados. Ele riu ao deliciar-se de novo com o amor antigo, o amor infante e seguiu até a lotérica, mas agora, a passos mais lentos.
Memória XV - Como amendoins
Eu me lembro do seu Zé do Amendoim. Nunca esqueci dos seus “torradinhos”, vendido no campo do Vigilante, no bairro Santa Cruz, onde, na infância, passava dias na casa da minha tia. Seu Zé, marido de Dona Judite, salgadeira de mão cheia, tinha um carrinho cheio de surpresas. Amendoins torradinhos, salgadinhos e que enchiam minhas tardes de alegria.
Seu Zé é muito importante para mim. Aliás, ele mora em mim e ocupa lugar privilegiado em minha memória. Nunca esqueci do gosto do seu amendoim, torradinho, que comia durante os jogos de futebol no campo do Vigilante no Santa Cruz. Nunca mais comi um amendoim como aquele. E duvido que alguém saiba fazer um igual. Nem os maiores mestres da culinária...Não adianta insistir: como aqueles, nunca mais. Isso, porque o sabor que a boca da infância provou, não poderá ser sentido de novo. Coisas proustianas...
Seu Zé do Amendoim está presente e vivo em minhas lembranças de menino para sempre. Com suas mãos negras, ele me afagava a cabeça e me presenteava com um saquinho mágico de amendoins. A lembrança do Seu Zé e de seus amendoins permanece comigo, aonde quer eu vá.
Nos tempos do mestrado em São João del Rei, conheci também, um outro vendedor de amendoins. Ele andava (e ainda deve andar) pelos bares são-joanenses, vendendo a guloseima. Fazia um tipo: cachecol, boina e paletó e uma bolsa com amendoins. Parecia a figura de um avô de 80 anos. Pedia licença, sentava-se à mesa, contava um causo. “Juscelino tomou café aqui, se não me engano, sentado mais ou menos onde você está. Tancredo só gostava de tomar café no balcão”, dizia, para contar que aquele bar já foi um restaurante no passado em que políticos famosos costumavam reunir-se. E ia revelando suas memórias da cidade histórica, falava da vida do lugar e ia nos envolvendo com sua prosa, até a gente comprar uns dois ou três pacotes de amendoins... Eram gostosos, mas nunca como os de seu Zé. O legitimo torradinho que nunca mais comi depois que cresci.
Cada cidade tem os seus personagens célebres e que compõem, mesmo sem querer, a vida das pessoas. São aqueles verdureiros, os garçons, os entregadores de leite, os donos de padaria, as personalidades que ficam vivas para sempre na memória. O vendedor de amendoim de São João é desse tipo. Mas não é como seu Zé, do Vigilante, no Santa Cruz, que está impregnado em mim, vivo, na saudade de seus torradinhos com os quais deliciava-me na infância. A memória é como esses amendoins.
Seu Zé é muito importante para mim. Aliás, ele mora em mim e ocupa lugar privilegiado em minha memória. Nunca esqueci do gosto do seu amendoim, torradinho, que comia durante os jogos de futebol no campo do Vigilante no Santa Cruz. Nunca mais comi um amendoim como aquele. E duvido que alguém saiba fazer um igual. Nem os maiores mestres da culinária...Não adianta insistir: como aqueles, nunca mais. Isso, porque o sabor que a boca da infância provou, não poderá ser sentido de novo. Coisas proustianas...
Seu Zé do Amendoim está presente e vivo em minhas lembranças de menino para sempre. Com suas mãos negras, ele me afagava a cabeça e me presenteava com um saquinho mágico de amendoins. A lembrança do Seu Zé e de seus amendoins permanece comigo, aonde quer eu vá.
Nos tempos do mestrado em São João del Rei, conheci também, um outro vendedor de amendoins. Ele andava (e ainda deve andar) pelos bares são-joanenses, vendendo a guloseima. Fazia um tipo: cachecol, boina e paletó e uma bolsa com amendoins. Parecia a figura de um avô de 80 anos. Pedia licença, sentava-se à mesa, contava um causo. “Juscelino tomou café aqui, se não me engano, sentado mais ou menos onde você está. Tancredo só gostava de tomar café no balcão”, dizia, para contar que aquele bar já foi um restaurante no passado em que políticos famosos costumavam reunir-se. E ia revelando suas memórias da cidade histórica, falava da vida do lugar e ia nos envolvendo com sua prosa, até a gente comprar uns dois ou três pacotes de amendoins... Eram gostosos, mas nunca como os de seu Zé. O legitimo torradinho que nunca mais comi depois que cresci.
Cada cidade tem os seus personagens célebres e que compõem, mesmo sem querer, a vida das pessoas. São aqueles verdureiros, os garçons, os entregadores de leite, os donos de padaria, as personalidades que ficam vivas para sempre na memória. O vendedor de amendoim de São João é desse tipo. Mas não é como seu Zé, do Vigilante, no Santa Cruz, que está impregnado em mim, vivo, na saudade de seus torradinhos com os quais deliciava-me na infância. A memória é como esses amendoins.
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