terça-feira, 14 de setembro de 2010

Memória XVI Flashes

A memória não é voluntária. Precisa de um “start” para ser ativada, precisa de um motivo para vir à tona e tocar a superfície das águas profundas, nas quais está mergulhada. Assim, ela não tem vontade própria, não surge em nossos pensamentos do nada, de repetente, não mais que de repente. Sempre há necessidade de um gatilho, de um flash inesperado e que desperte essas recordações.
Assim, caminhando pela avenida no fim de tarde, sentindo calor por causa da falta de chuva nesta época do ano, ele pensa nas contas a pagar. Pensa na fatura do cartão de crédito e fala de si para si: “Preciso diminuir esses gastos”. Está concentrando, os passos seguem rápido porque já são dez para as seis e é preciso chegar à lotérica antes que ela feche.
Mas aí, eis que de repente, uma brisa desatenta o pega de surpresa, com um perfume que ele não sentia há tempos. Em frações de segundos ele vasculha os arquivos cerebrais e descobre numa prateleira empoeirada, a lembrança de Maria, a primeira namoradinha.
Eram jovens demais. Ele tinha 14, talvez 15 anos. Ela não muito mais que isso. Mas o perfume que ela usava era aquele, como era mesmo o nome? Nesse instante veloz, nesse assalto repentino de memória, ele diminui o ritmo dos passos e se esquece da conta a pagar. Em seus olhos está Maria, seus cabelos pretos, compridos e molhados, penteados com as pontas dos dedos... Por onde anda hoje? Terá casado? Terá morrido? Faz anos... Mas o perfume, inconfundível, era o mesmo. Esse perfume que ele tanto adorava e que estava adormecido em algum lugar ermo da lembrança voltou a
E a saudade doeu, mas trouxe uma pontinha de prazer nessa recordação: ele e Maria, há tanto tempo, brincando de se amar: e era por toda a vida! Tudo era intenso, a vida era bebida depressa e com a sede dos que amam tão jovens... Maria se foi e ele também nem se lembrava de que fora um rapaz apaixonado um dia.
Bastou o perfume para lembrar. Aquele cheiro adocicado que inundou sua vida, naquele fim de tarde em que a chuva insistia em não chegar e o calor e o tempo seco deixavam tudo mais difícil. O perfume que veio com a brisa, inundou sua alma de memória. E ele agora estava inebriado de nostalgia, do tempo bom em que era rapaz e não tinha com o que se preocupar, a não ser, amar Maria e seus cabelos molhados. Ele riu ao deliciar-se de novo com o amor antigo, o amor infante e seguiu até a lotérica, mas agora, a passos mais lentos.

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