João Monlevade, a minha cidade, a nossa cidade precisa reconhecer suas tradições. Ou melhor, precisa validá-las. O pensador Eric Hobsbawm (1991) afirma que quando não há valorização do que é tradicional, inevitavelmente, ocorre a invenção de outras tradições. Ele assegura que os costumes, quando não usados, acabam substituídos por outros, que muitas vezes nem se parecem com a realidade local: são inventados, para substituir os legítimos que estão adormecidos.
Uma cidade que não tem tradições é tristemente desnivelada. É vista por baixo. É pobre. Nossa cidade é carente de tradições culturais que possam elevar-lhe o nome junto às demais. O que caracteriza o município? Catas Altas faz vinho, Ouro Preto tem o Barroco, Alvinópolis tem a chita e nós? Bem, fazemos aço, é verdade. E o fazemos, em maior escala, desde 1827, quando chegaram os equipamentos ingleses que turbinaram a fábrica modesta de Jean Antoine Félix Dissandes de Monlevade.
Mas o aço que produzimos ocupa (e muito bem) o segmento econômico. É interessante pensar que o mundo conhece o fio máquina fabricado aqui por trabalhadores, que são nossos pais, parentes e irmãos. Mas nós, monlevadenses, desconhecemos a força cultural desse material.
Uma cidade sem tradição vira as costas para o progresso. Seria esse o motivo de nossa estagnação cultural? Por que não abraçamos os aços longos da Usina e o transformamos em nossa bandeira? Por que não há uma discussão sobre a produção, um seminário nacional de siderurgia realizado no município? Por que não há um festival cultural do aço? Por que não há oficinas diversas sobre o assunto? A população sabe como é feito o aço desta terra e que ganhou o mundo?
Mas lembrando de Hobsbawm (1991), o que chamamos de tradição, aqui, sinceramente, não é nosso de fato. Não faz parte e nem corresponde às nossas raízes. Pense bem: Nosso maior evento cultural é uma cavalgada... isso, numa cidade que tem área mínima de zona rural. Por que gostamos tanto de encontro de motociclistas e desconhecemos nossos artistas plásticos?
Precisamos construir nossas tradições. Entender de onde surgiram nossas raízes para fazer disso a bandeira de nossa cidade. Enquanto desconhecermos essa identidade, essa memória cultural, continuaremos aplaudindo as invenções que se tornaram tradições em Monlevade.
* Hobsbawm, Eric. A invenção das tradições (1991).
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Nossa Memória Virtual
O advento da tecnologia digital é também um avanço para as questões ligadas ao memorialismo e à coleção de dados e informações, que, embora despretensiosamente, tornam-se importantes elementos de rememoração. Explico. Na era digital em que estamos inseridos, o desejo de reunir e gravar as informações que nos rodeiam é cada vez maior.
Hoje, qualquer aparelho de celular é provido de uma câmera digital, que está pronta para o registro de momentos especiais. Às vezes, por causa deste acesso facilitado a uma câmera, todo momento torna-se especial. Basta clicar e pronto.
Aliando isso às redes sociais, através da Internet, como Orkut, Twitter e blogs dos mais variados tipos, a memória faz-se cada vez mais presente. Isso, por causa da facilidade de compartilhar informações pessoais com o resto do planeta.
Muito em função da Pós-Modernidade, que nos atropela com sua velocidade e com a pulverização da materialidade, o indivíduo sente necessidade de manter-se vivo, de fazer-se presente neste mundo virtual que nos envolve.
Talvez por isso, explica-se o excesso de exposição da individualidade: a escrita de blogs, a postagem de mensagens estritamente pessoais via Twitter, o compartilhamento de imagens e fotografias no Orkut e no Facebook, além do registro de vídeos e a divulgação dos mesmos através do Youtube. É como se precisássemos de nos revelar, revelando nossas emoções e experiências.
A era digital chegou e por mais atual que ela seja, representa também e cada vez mais claro, um desejo de arquivar a vida por meio da exposição da individualidade. Nunca se viu tanto autorretrato como agora. Nunca se viu tanta escrita de si, tanta exposição pessoal, tantos registros de memória.
A pós-modernidade luta contra a falta de tempo e de espaço. Talvez por isso, bastam 140 caracteres para contar um fragmento da existência pessoal. A maioria das pessoas que utilizam esses recursos de coleção da memória está em busca da elaboração de um grande livro da vida, cujas páginas são redigidas por fragmentos no universo virtual das redes sociais.
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
A escrita de nossa história
A nossa historia é escrita todos os dias, ao recolhermos, em nossos arquivos, fatos e acontecimentos pessoais ou coletivos que marcaram os momentos vividos.
Desde a época das cavernas, o homem tenta se arquivar. As pinturas em pedras e cavernas representam a mais pura necessidade de registrar a história. Os animais reproduzidos em tinta vermelha e aquelas figuras parecidas com humanos compõem uma narrativa, para que, num futuro, alguém compreendesse aquela história.
Depois, com a invenção da imprensa, os homens começaram a registrar seus feitos em diários e a revelar-se por meios de longas correspondências. Muitas dessas informações depois, tornaram-se documentos preciosos.
Hoje, a escrita da história é uma das características da chamada era pós-moderna, na qual estamos inseridos. Oprimidos pela fragmentação, pelo excesso de informações e pela velocidade que assola nossos dias, agarramos cada vez mais às nossas memórias, transformadas em tabuas de salvação contra o esse mundo, em que a superficialidade, o instantâneo e as grandes verdades caíram por terra.
E, é exatamente na Pós- Modernidade, que as escritas das memórias pessoais ganham força. Sejam elas biográficas ou autobiográficas, textos do gênero ganham cada vez mais espaço nas prateleiras de livrarias e também nos jornais e revistas. O importante Folha de S.Paulo traz um obtuário interessantíssimo. Baseado na mesma fórmula do grande The New York Times e de alguns jornais londrinos, um repórter escreve, em poucas linhas, a biografia de algum falecido (famoso ou anônimo, não importa) em estilo literário, destacando detalhes da personalidade do indivíduo, tão interessantes, que o aproxima de um personagem de ficção. Eu adoro ler e recomendo. Inclusive, já até me arrisquei a escreve alguns.
A necessidade de redigir sobre nós mesmos, de deixar marcas na história é uma característica da coleção pessoal, exigida desde os tempos imemoriais. Os seres humanos têm carência de lembrança, precisam desse apego ao passado, desse encontro com o que foram um dia. Assim: a memória é nosso maior banquete. Deliciemo-nos.
Desde a época das cavernas, o homem tenta se arquivar. As pinturas em pedras e cavernas representam a mais pura necessidade de registrar a história. Os animais reproduzidos em tinta vermelha e aquelas figuras parecidas com humanos compõem uma narrativa, para que, num futuro, alguém compreendesse aquela história.
Depois, com a invenção da imprensa, os homens começaram a registrar seus feitos em diários e a revelar-se por meios de longas correspondências. Muitas dessas informações depois, tornaram-se documentos preciosos.
Hoje, a escrita da história é uma das características da chamada era pós-moderna, na qual estamos inseridos. Oprimidos pela fragmentação, pelo excesso de informações e pela velocidade que assola nossos dias, agarramos cada vez mais às nossas memórias, transformadas em tabuas de salvação contra o esse mundo, em que a superficialidade, o instantâneo e as grandes verdades caíram por terra.
E, é exatamente na Pós- Modernidade, que as escritas das memórias pessoais ganham força. Sejam elas biográficas ou autobiográficas, textos do gênero ganham cada vez mais espaço nas prateleiras de livrarias e também nos jornais e revistas. O importante Folha de S.Paulo traz um obtuário interessantíssimo. Baseado na mesma fórmula do grande The New York Times e de alguns jornais londrinos, um repórter escreve, em poucas linhas, a biografia de algum falecido (famoso ou anônimo, não importa) em estilo literário, destacando detalhes da personalidade do indivíduo, tão interessantes, que o aproxima de um personagem de ficção. Eu adoro ler e recomendo. Inclusive, já até me arrisquei a escreve alguns.
A necessidade de redigir sobre nós mesmos, de deixar marcas na história é uma característica da coleção pessoal, exigida desde os tempos imemoriais. Os seres humanos têm carência de lembrança, precisam desse apego ao passado, desse encontro com o que foram um dia. Assim: a memória é nosso maior banquete. Deliciemo-nos.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Memorialismo pulsante na artéria
João Monlevade, apesar dos poucos 46 anos, é uma cidade com uma veia memorialística forte demais. Já disse isso em outras ocasiões e volto a explicar o motivo: a cidade foi dilacerada com a extinção de toda uma região, a Praça do Mercado e adjacências, onde as vivências de grande parte da população local ficaram enterradas na saudade. E, isso é, notoriamente, uma dor profunda na alma do monlevadense.
Já falei também neste espaço, que Francisco Barcelona e o professor Dadinho são os arcontes da cidade. São os guardiões dos arquivos e intérpretes deles. Já falei ainda, do jornal O Morro do Geo e do jornalista Marcelo Melo, um dos primeiros a resgatar esse passado tão vivo quanto presente de nossa cidade. Coramar Alves e Francisco Bernardino também colecionam causos e vivências sobre o passado de João Monlevade. Agora, descubro o trabalho do advogado Sebastião Eustáquio, que pela Internet, mantém um blog em que fala também da cidade antiga, chamando a atenção para locais históricos. Tudo muito interessante.
Outro dia comecei a refletir sobre uma questão: a Usina, por motivos de sua expansão, há cerca de 25 anos, precisou ocupar a Cidade Alta, em nome do progresso e do desenvolvimento. Será que, com as novas obras de duplicação da capacidade de produção, outras partes da cidade também não poderão ser extintas? Rua dos Contratados? Região do Social Clube? Antiga “vila dos engenheiros?” E se a mudanças do presente, com as novas obras, trouxerem novos impactos ao patrimônio municipal? Sim, eu sei: o progresso tem dessas coisas mesmo. Mas, será que a história vai se repetir?
Na verdade, a memória, em Monlevade, tem grandes particularidades. Uma delas, talvez seja, justamente, o desejo de que aquele tempo, vivido no Centro Industrial de antigamente voltasse de novo. Não sei o que isso significa ou o que representa. Lembro de Freud, num estudo em que revela que todo colecionador tem pulsão de morte. Grosso modo, o genial psicanalista afirma que quem coleciona algo, tem tanto medo de ser esquecido, que vai arquivando o presente e tudo o quanto pode salvar, enquanto a vida não lhe escape dos dedos. Talvez, por medo de um dia, a história tornar a se repetir, o monlevadense tem essa mesma pulsão, esse desejo de amar demais o passado e se esquecer de olhar para o presente e para o futuro. Vamos seguir em frente!
Já falei também neste espaço, que Francisco Barcelona e o professor Dadinho são os arcontes da cidade. São os guardiões dos arquivos e intérpretes deles. Já falei ainda, do jornal O Morro do Geo e do jornalista Marcelo Melo, um dos primeiros a resgatar esse passado tão vivo quanto presente de nossa cidade. Coramar Alves e Francisco Bernardino também colecionam causos e vivências sobre o passado de João Monlevade. Agora, descubro o trabalho do advogado Sebastião Eustáquio, que pela Internet, mantém um blog em que fala também da cidade antiga, chamando a atenção para locais históricos. Tudo muito interessante.
Outro dia comecei a refletir sobre uma questão: a Usina, por motivos de sua expansão, há cerca de 25 anos, precisou ocupar a Cidade Alta, em nome do progresso e do desenvolvimento. Será que, com as novas obras de duplicação da capacidade de produção, outras partes da cidade também não poderão ser extintas? Rua dos Contratados? Região do Social Clube? Antiga “vila dos engenheiros?” E se a mudanças do presente, com as novas obras, trouxerem novos impactos ao patrimônio municipal? Sim, eu sei: o progresso tem dessas coisas mesmo. Mas, será que a história vai se repetir?
Na verdade, a memória, em Monlevade, tem grandes particularidades. Uma delas, talvez seja, justamente, o desejo de que aquele tempo, vivido no Centro Industrial de antigamente voltasse de novo. Não sei o que isso significa ou o que representa. Lembro de Freud, num estudo em que revela que todo colecionador tem pulsão de morte. Grosso modo, o genial psicanalista afirma que quem coleciona algo, tem tanto medo de ser esquecido, que vai arquivando o presente e tudo o quanto pode salvar, enquanto a vida não lhe escape dos dedos. Talvez, por medo de um dia, a história tornar a se repetir, o monlevadense tem essa mesma pulsão, esse desejo de amar demais o passado e se esquecer de olhar para o presente e para o futuro. Vamos seguir em frente!
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Memórias XVIII - Esquecer para lembrar
O escritor argentino Jorge Luís Borges tem um conto interessantíssimo sobre a memória. “Funes, o Memorioso” narra a história de um homem que, após sofrer uma queda, parou de esquecer. Depois do acidente, ele se lembrava de tudo o que tinha visto, ouvido e vivido, sem deixar escapar um detalhe sequer. No entanto, a “doença” da memória o deixou com a incapacidade de pensar. “Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar.Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair’, afirma o narrador.
Imerso nesta constante memorização, Funes não refletia, não selecionava as informações para que pudesse lembrar depois. O excesso de memória mata a reflexão. Não adianta iniciarmos uma longa e interminável rememoração de tudo o que se passou, sem algum critério mínimo de organização.
Não adianta, como a personagem do conto, nos transformarmos em um banco de informações e dados preciosos a respeito de nosso passado, sem no entanto, lançar sequer um olhar de crítica para ele. Hoje, vivemos num mundo tomado de informações: jornais, revistas, sites, blogs, redes sociais, entre outros elementos nos bombardeiam, a toda hora, com tantos dados.
No entanto, é preciso filtrar, reciclar, organizar e criticar para que a memória seja, então, valorizada de fato. Não adianta nos tornarmos enciclopédias repletas de saudosismo e nada mais. Até porque, o memorialismo não é feito somente de coisas aprazíveis. A memória, além da doce rememoração, pode também trazer o cheiro pobre do passado. Mas insistimos em esquecer desses percalços. Como ferramenta de felicidade, alimentamos uma falta daquilo que julgamos ter amado um dia.
Esquecimento e lembrança complementam-se. Precisam um do outro. Estão unidos numa interdependência fora do comum, pois um não vive sem o outro. Neste sentido, apesar do ridículo obvio, é preciso esquecer para lembrar. E se não nos esquecermos, como podemos fazer uma seleção daquilo que, de fato, merece figurar nas listas de reminiscências? Como valorizar os detalhes importantes de nossa história, se insitimos em lembrar sempre das mesmas coisas? Sim. A memória daquilo que está sempre sendo lembrado, torna-se banalizada. Esqueçamos. Para então lembramos depois.
Imerso nesta constante memorização, Funes não refletia, não selecionava as informações para que pudesse lembrar depois. O excesso de memória mata a reflexão. Não adianta iniciarmos uma longa e interminável rememoração de tudo o que se passou, sem algum critério mínimo de organização.
Não adianta, como a personagem do conto, nos transformarmos em um banco de informações e dados preciosos a respeito de nosso passado, sem no entanto, lançar sequer um olhar de crítica para ele. Hoje, vivemos num mundo tomado de informações: jornais, revistas, sites, blogs, redes sociais, entre outros elementos nos bombardeiam, a toda hora, com tantos dados.
No entanto, é preciso filtrar, reciclar, organizar e criticar para que a memória seja, então, valorizada de fato. Não adianta nos tornarmos enciclopédias repletas de saudosismo e nada mais. Até porque, o memorialismo não é feito somente de coisas aprazíveis. A memória, além da doce rememoração, pode também trazer o cheiro pobre do passado. Mas insistimos em esquecer desses percalços. Como ferramenta de felicidade, alimentamos uma falta daquilo que julgamos ter amado um dia.
Esquecimento e lembrança complementam-se. Precisam um do outro. Estão unidos numa interdependência fora do comum, pois um não vive sem o outro. Neste sentido, apesar do ridículo obvio, é preciso esquecer para lembrar. E se não nos esquecermos, como podemos fazer uma seleção daquilo que, de fato, merece figurar nas listas de reminiscências? Como valorizar os detalhes importantes de nossa história, se insitimos em lembrar sempre das mesmas coisas? Sim. A memória daquilo que está sempre sendo lembrado, torna-se banalizada. Esqueçamos. Para então lembramos depois.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Memórias XVII - Livro de receitas
Em toda família há um livro de receitas antigo. O precioso compilado de “modos de fazer” guloseimas, herdado da avó pela mãe e que deverá será herdado pela filha, é o registro gastronômico de várias gerações. Esse livro tem informações que ultrapassam a fronteira dos anos. E é mágico. Assim, um dia, cinquenta anos depois, a bisneta aprende a fazer os pasteizinhos de queijo que eram a especialidade da sua bisavó. E talvez, ela os torne ainda mais saborosos.
A partir desse exemplo primário, percebe-se a dimensão que os registros históricos têm em nossa vida. É preciso respeitar essas questões, pois elas contribuem para a composição de toda uma memória e também de uma história. Ressalta-se a importância da preservação dos documentos (no caso, o livro de receitas). Mas também, é preciso revisá-los, mergulhar a fundo nos saberes ali descritos, tentando compreender o que de fato eles representam. O pensador francês, * Michel Foucault afirmou certa vez, que a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo (...).
Resumindo, a grosso modo, o que disse o filósofo, o documento (o livro de receitas) não pode ser imaculado, algo intocável. Pelo contrário, deve ser, inclusive, questionado, incrementado, mexido e testado. Assim, nossa memória precisa ser reorganizada de forma crítica. Não se pode enaltecer tudo o que foi registrado, sem estabelecer m ponto de vista crítico.
Em vez de bater palmas para o que ficou do passado (e só porque ficou) é mais interessante, entender os rastros e as marcas deixadas por esse objeto ao longo dos anos. A sua constituição, a sua importância e as razões que o tornaram tão célebres. Vejamos. Depois de admirar o livro de receitas da avó, é preciso ver se os ensinamentos levam, realmente, a pratos saborosos.
Há muitos documentos intocáveis e que são elevados à categoria de obras (ou feitos) fundamentais. Mas, talvez, ninguém “ousou” saber qual de fato é a sua razão de ser. Nesse sentido, a revisão de nossa memória deve ser feita constantemente. Elogiar e reconhecer a importância dos documentos é fundamental para nossa condição de memorialistas. No entanto, é necessário rever essas fontes, desconfiando das coisas antigas e não apenas aplaudindo, sem interpretar e sem dar ouvidos ao contraditório.
* FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.
A partir desse exemplo primário, percebe-se a dimensão que os registros históricos têm em nossa vida. É preciso respeitar essas questões, pois elas contribuem para a composição de toda uma memória e também de uma história. Ressalta-se a importância da preservação dos documentos (no caso, o livro de receitas). Mas também, é preciso revisá-los, mergulhar a fundo nos saberes ali descritos, tentando compreender o que de fato eles representam. O pensador francês, * Michel Foucault afirmou certa vez, que a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo (...).
Resumindo, a grosso modo, o que disse o filósofo, o documento (o livro de receitas) não pode ser imaculado, algo intocável. Pelo contrário, deve ser, inclusive, questionado, incrementado, mexido e testado. Assim, nossa memória precisa ser reorganizada de forma crítica. Não se pode enaltecer tudo o que foi registrado, sem estabelecer m ponto de vista crítico.
Em vez de bater palmas para o que ficou do passado (e só porque ficou) é mais interessante, entender os rastros e as marcas deixadas por esse objeto ao longo dos anos. A sua constituição, a sua importância e as razões que o tornaram tão célebres. Vejamos. Depois de admirar o livro de receitas da avó, é preciso ver se os ensinamentos levam, realmente, a pratos saborosos.
Há muitos documentos intocáveis e que são elevados à categoria de obras (ou feitos) fundamentais. Mas, talvez, ninguém “ousou” saber qual de fato é a sua razão de ser. Nesse sentido, a revisão de nossa memória deve ser feita constantemente. Elogiar e reconhecer a importância dos documentos é fundamental para nossa condição de memorialistas. No entanto, é necessário rever essas fontes, desconfiando das coisas antigas e não apenas aplaudindo, sem interpretar e sem dar ouvidos ao contraditório.
* FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Memória XVI Flashes
A memória não é voluntária. Precisa de um “start” para ser ativada, precisa de um motivo para vir à tona e tocar a superfície das águas profundas, nas quais está mergulhada. Assim, ela não tem vontade própria, não surge em nossos pensamentos do nada, de repetente, não mais que de repente. Sempre há necessidade de um gatilho, de um flash inesperado e que desperte essas recordações.
Assim, caminhando pela avenida no fim de tarde, sentindo calor por causa da falta de chuva nesta época do ano, ele pensa nas contas a pagar. Pensa na fatura do cartão de crédito e fala de si para si: “Preciso diminuir esses gastos”. Está concentrando, os passos seguem rápido porque já são dez para as seis e é preciso chegar à lotérica antes que ela feche.
Mas aí, eis que de repente, uma brisa desatenta o pega de surpresa, com um perfume que ele não sentia há tempos. Em frações de segundos ele vasculha os arquivos cerebrais e descobre numa prateleira empoeirada, a lembrança de Maria, a primeira namoradinha.
Eram jovens demais. Ele tinha 14, talvez 15 anos. Ela não muito mais que isso. Mas o perfume que ela usava era aquele, como era mesmo o nome? Nesse instante veloz, nesse assalto repentino de memória, ele diminui o ritmo dos passos e se esquece da conta a pagar. Em seus olhos está Maria, seus cabelos pretos, compridos e molhados, penteados com as pontas dos dedos... Por onde anda hoje? Terá casado? Terá morrido? Faz anos... Mas o perfume, inconfundível, era o mesmo. Esse perfume que ele tanto adorava e que estava adormecido em algum lugar ermo da lembrança voltou a
E a saudade doeu, mas trouxe uma pontinha de prazer nessa recordação: ele e Maria, há tanto tempo, brincando de se amar: e era por toda a vida! Tudo era intenso, a vida era bebida depressa e com a sede dos que amam tão jovens... Maria se foi e ele também nem se lembrava de que fora um rapaz apaixonado um dia.
Bastou o perfume para lembrar. Aquele cheiro adocicado que inundou sua vida, naquele fim de tarde em que a chuva insistia em não chegar e o calor e o tempo seco deixavam tudo mais difícil. O perfume que veio com a brisa, inundou sua alma de memória. E ele agora estava inebriado de nostalgia, do tempo bom em que era rapaz e não tinha com o que se preocupar, a não ser, amar Maria e seus cabelos molhados. Ele riu ao deliciar-se de novo com o amor antigo, o amor infante e seguiu até a lotérica, mas agora, a passos mais lentos.
Assim, caminhando pela avenida no fim de tarde, sentindo calor por causa da falta de chuva nesta época do ano, ele pensa nas contas a pagar. Pensa na fatura do cartão de crédito e fala de si para si: “Preciso diminuir esses gastos”. Está concentrando, os passos seguem rápido porque já são dez para as seis e é preciso chegar à lotérica antes que ela feche.
Mas aí, eis que de repente, uma brisa desatenta o pega de surpresa, com um perfume que ele não sentia há tempos. Em frações de segundos ele vasculha os arquivos cerebrais e descobre numa prateleira empoeirada, a lembrança de Maria, a primeira namoradinha.
Eram jovens demais. Ele tinha 14, talvez 15 anos. Ela não muito mais que isso. Mas o perfume que ela usava era aquele, como era mesmo o nome? Nesse instante veloz, nesse assalto repentino de memória, ele diminui o ritmo dos passos e se esquece da conta a pagar. Em seus olhos está Maria, seus cabelos pretos, compridos e molhados, penteados com as pontas dos dedos... Por onde anda hoje? Terá casado? Terá morrido? Faz anos... Mas o perfume, inconfundível, era o mesmo. Esse perfume que ele tanto adorava e que estava adormecido em algum lugar ermo da lembrança voltou a
E a saudade doeu, mas trouxe uma pontinha de prazer nessa recordação: ele e Maria, há tanto tempo, brincando de se amar: e era por toda a vida! Tudo era intenso, a vida era bebida depressa e com a sede dos que amam tão jovens... Maria se foi e ele também nem se lembrava de que fora um rapaz apaixonado um dia.
Bastou o perfume para lembrar. Aquele cheiro adocicado que inundou sua vida, naquele fim de tarde em que a chuva insistia em não chegar e o calor e o tempo seco deixavam tudo mais difícil. O perfume que veio com a brisa, inundou sua alma de memória. E ele agora estava inebriado de nostalgia, do tempo bom em que era rapaz e não tinha com o que se preocupar, a não ser, amar Maria e seus cabelos molhados. Ele riu ao deliciar-se de novo com o amor antigo, o amor infante e seguiu até a lotérica, mas agora, a passos mais lentos.
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